INTRODUÇÃO AO MÉTODO TEÓRICO

Do estado de coisas para o estado de alma

Este curso só foi possível após três décadas de desenvolvimento da Semiótica das Paixões, uma nova ciência do conhecimento que estuda o sentido das paixões nos sujeitos, uma nova teoria da narrativa que leva em conta o estado de alma dos personagens na construção do personagem de ficção.

Uma ciência da ficção, chamada assim por incorporar o sujeito à narrativa, por incluir o seu sentir junto ao seu agir. Saímos de uma teoria da ação para uma teoria da emoção, do agir para o sentir dos personagens, que vem fazer muito sentido ao levarmos em conta que é o “sentir” que rege a “ação” dos personagens.

O arco geral de uma série ou de um filme, que é gerado a partir das ações dos personagens, nesta teoria, também é formado a partir dos efeitos das transformações das paixões nos personagens. Uma jornada de um personagem, em busca de um objeto, é operada por uma ação, que, por sua vez, é regida pelas emoções deste personagem, e o arco decorre da junção desses dois conceitos: do agir e do sentir.

A Semiótica das Paixões leva em conta que o texto de ficção possui três níveis, dispostos em um Percurso Gerativo do Sentido: o nível “superficial”, onde estão os discursos, ações e diálogos; o “narrativo”, onde estão os estados patêmicos de alma e os modos de existência regendo as ações; e o nível “profundo”, onde as forças tensivas operam para empurrar o personagem rumo à potencialização de sua alma.

Esta teoria inédita vai seguir esse percurso teórico, que pode ser aplicado ao roteiro de ficção em forma de “esquemas”. São vários esquemas teóricos para entendermos como podemos escrever estruturas tão complexas, como a de “Roma”, de Alfonso Cuáron, que invisibiliza o sentimento dos personagens em suas ações simples, a narrativas mais clássicas, como “Game of Thrones”, onde a jornada do herói está evidente, mas, também, regida pela jornada afetiva de todos os seus personagens.

“Game of Thrones” só funciona como uma série perfeita, e uma das mais premiadas da história da TV mundial, porque não se apoia apenas nas estruturas da ação, mas também nas motivações passionais de cada personagem. Em “Roma”, as jornadas de duas heroínas são transmitidas através de sensações, e não por suas ações. Estes esquemas possibilitam mostrar que os arcos do filme e dos personagens Cleo e Sofia são ocasionados por pontos de virada em forma de “sensação” e não pela “ação”.

Essa mudança do estado de “coisas” para o estado de “alma”, que é o subtítulo do livro “Semiótica das Paixões”, de Greimas e Fontanille, originou uma teoria da narrativa baseada nas emoções dos personagens, chamada de Semiótica Francesa, desenvolvida na França, por A.J. Greimas, no início dos anos 1990, e, por ter alcançado tanto sucesso, foi chamada de semiótica “greimasiana”, uma nova ciência oriunda da linguística para a teoria da narrativa.

Esse choque e essa mudança que continua até os dias atuais, trata-se da mudança de um paradigma, em que o foco das estruturas dos personagens e da narrativa passa de um “estado de coisas para um estado de alma”. De uma teoria da ação para uma nova, da emoção.

Inicialmente, esta semiótica avançou no campo da semiótica plástica e visual, inclusive com grande sucesso na sua aplicação na Publicidade e no Marketing, por Jean-Marie Floch, e, somente agora, após mais de duas décadas, estamos aplicando esta teoria no campo do Cinema e da narrativa de ficção.

O arco do agir e do sentir

O arco do agir é construído através dos objetivos de um personagem, como é o arco de vingança da personagem Arya, em “Game of Thrones”, que vai de um não-saber-matar, para um poder-matar quem ela quiser. Enquanto o arco do sentir remete ao personagem, e não à estrutura do roteiro, as suas mudanças, nesta curva, vai de um estado de satisfação a um estado de ódio e vingança.

O Programa Narrativo de vingança de um personagem deverá ser motivado por uma necessidade de liquidar quem lhe causou o dano, assim como também liquidar, ao mesmo tempo, o ódio, o real motivador de seu sentimento de vingança. O sentir e o agir operam sempre juntos para formar apenas um arco, tanto para o personagem, quanto para a estrutura narrativa.

Nesta teoria, o sentir (estado de alma) rege o agir (estado de coisas), o sensível(imanente) rege o inteligível (o mundo das coisas), enquanto que, do ponto de vista da estrutura, o que rege esta teoria é a concessão, que irá promover os pontos de virada do arco de uma história e de um personagem, através de Acontecimentos Extraordinários.

Até então, tínhamos uma teoria narrativa amparada na “narratividade”, que leva em conta o agir como sentido para um roteiro, e essa teoria aqui apresentada também é da ação, mas tem como novidade a teoria da emoção.

A teoria da paixão é importante, porque é o sentir que regeo agir, sendo que as emoções é que provocam as ações dos personagens, geram suas ações e falas, influenciando a passagem de um ato a outro, e as transformações obrigatórias da história, fazendo sentido, porque também está em operação um sentido dos personagens, sensibilizando a história e o espectador.

A Semiótica das Paixões se tornou a mais nova ciência no campo do conhecimento, exatamente porque consegue explicar como os sujeitos são regidos por suas paixões, e como elas os afetam.

A dificuldade é que este conhecimento se encontra em uma área muito restrita, somente nas grandes universidades, com acesso limitado à mestres e doutores. Foram necessárias três décadas de pesquisas para extrair, somente agora, esse conhecimento para além dos muros da academia e aplicá-lo no mundo prático.

Estruturas concessivas

Do ponto de vista da estrutura passional do personagem, esta semiótica absorvida nesta teoria veio iluminar um campo do sujeito que chamamos de “alma”, fundamentada a partir do “sofrimento”, sem a qual seria impossível estabelecer os esquemas para entendermos a narrativa concessiva.

O esquema organizador desta estrutura sensível é a “concessão”, é um ponto de tensão na narrativa por causa do seu efeito de “surpresa” que causa à história e ao personagem.

Do pondo de vista da estrutura da ação, é a concessão o lugar da surpresa. Do ponto de vista dos efeitos dos afetos, a “surpresa” é regida por um esquema “concessivo”, em razão da chegada do inesperado. A surpresa é a quebra do esperado, rompe com a implicação e abre uma concessão a esta narrativa para que o inesperado aconteça.

O esquema concessivo, em resumo, é o “inesperado” (em contraponto ao implicativo, o “esperado”), é onde podemos dominar a mudança de rumo dos personagens e suas paradas bruscas diante do inesperado.

Os personagens mudam constantemente de rumo, pois são guiados pelo “sobrevir”, por algo que acontece de repente e os surpreendem de forma concessiva, quando eles não estão esperando. É a espera do inesperado.

Enquanto que, nas estruturas “implicativas”, oposto das “concessivas”, está a ação esperada e programada pelo personagem, que é a espera do esperado. A concessão se baseia no inesperado, enquanto que a implicação se baseia no esperado. Só é surpresa, portanto, se o personagem for afetado pelo inesperado.

Do ponto de vista da estrutura do roteiro, esta teoria consegue revelar as camadas invisíveis da narrativa e dos personagens, com os mesmos princípios básicos da narrativa, deixados por Aristóteles, de que os eventos precisam de ao menos duas transformações, divididas em três atos, tempo necessário para formar o arco dramático da história e do personagem.

O percurso afetivo e de ação de um personagem é traçado a partir dos acontecimentos que o tiram de um estado de “espera”, que tem peso se for surpreendido pelo inesperado, causando um rompimento no mundo do agir do personagem e deixando uma fratura em sua alma, cujo objeto de seu projeto de ação será fechar essa fratura, liquidar essa falta que o impele a agir.

A jornada será a realização de um arco afetivo, baseado nas suas constantes e necessárias transformações.

A jornada de um personagem na narrativa, através de um programa de realização, é estabelecida a partir destes acontecimentos que promovem a ação, mas que, na verdade, sua busca está em uma liquidação de seu sofrimento, de uma potencialização de sua alma, mesmo que seja de maneira concessiva. Todo personagem é movido por sua imperfeição em busca de uma perfeição concessiva.

Esta teoria, com seus módulos bastante explicativos, possibilita descrever a curva invisível daquilo que promove a curva do visível, da ação. Este método tem acesso a esse arco invisível do personagem e ao seu controle, para usá-lo de maneira lógica e correta no desenvolvimento de suas histórias.

Narratividade, Marketing e Paixão

Greimas, um dos fundadores da Escola de Semiótica de Paris, levou ao mundo a semente da Semiótica das Paixões nos anos 1980, quando publicou o livro “Do Sentido”, que mudou o rumo da narrativa, ao expor um esquema baseado em um sujeito regido por modalidades passionais.

Somente em 1991, ao lançar, com Jacques Fontanille, o livro seminal “Semiótica das Paixões”, aplicada ao significante do personagem de ficção, que a semiótica ganhou o corpo teórico aplicado nos dias de hoje.

Nossa teoria também se apoiou na obra mais hermética de Greimas, “Da Imperfeição”, publicada na França, em 1987, considerada a sua obra mais complexa, pela ousadia de criar uma estética para o “sujeito”. Não apenas uma teoria a mais para uma estética, mas uma estética para o sujeito que nasce em contraponto à estética do objeto. Uma interpretação correta que ainda precisa ser reconhecida.

Neste livro, o autor elabora esquemas de como um personagem sente o acontecimento extraordinário na forma de uma “sensação”. Quando é sugado do mundo do agir para o mundo do sensível, através do que chega no impacto do inesperado. E que isso pode ser tanto uma “estesia” estética, se o acontecimento for diante de uma obra de arte, quanto de uma “fratura” na alma, se o acontecimento ocorrer diante de seus próprios fantasmas existenciais.

Já nos anos 2000, a Semiótica das Paixões ganhou mais um capítulo, desenvolvido por Claude Zilberberg, um parceiro e seguidor de Greimas, com a Semiótica Tensiva, que irá incorporar a fenomenologia de Husserl, o sentido do ser como “presença” de Heidegger em “O Ser e o Tempo”.

Neste estudo, o autor irá incorporar o “corpo sensível”, de Merleau-Ponty e Gilles Deleuze, pois a “sensação” é sentida de forma corpórea, o corpo “sente”, esquematizando esses aspectos subjetivos em um esquema do acontecimento extraordinário, retornando às origens da Semiótica Narrativa e das Paixões.
A Semiótica das Paixões não vem da Narratividade, largamente difundida nos anos 1960, desenvolvida por Umberto Eco, Roland Barthes e Tzvetan Todorov, entre outros.

Greimas fez parte do grupo, especialmente quando pulicaram um conjunto de ensaios intitulado “Análise Estrutural da Narrativa”, lançado na Europa, em 1966. Neste livro, os estudos de Greimas se baseava em Propp, ainda sendo revelados na França pelo viés simbólico de Claude-Levy Strauss, o tradutor de V. Propp do russo para o francês.

Do grupo ligado à Narratividade, somente Greimas desenvolveu uma nova teoria narrativa baseada nas passionalidades dos personagens e que virou uma semiótica das paixões, que “incorpora”, finalmente, o sujeito à narrativa, um campo novo sem referências conhecidas no campo da narrativa explorado pela Narratividade.

No campo da Psicologia, Jacques Lacan elegeu o estudo do “significante” do imaginário como sua base teórica para entender a psicologia dos sujeitos. E, agora, temos uma nova teoria também baseada no “significante”, mas desta vez do próprio sujeito, através de suas paixões. A Semiótica das Paixões vem ser a “semiótica do sujeito” ou a “semiótica do sofrimento”, só possível por causa da existência de uma Semiótica da Concessão, a que mais iremos destacar neste estudo.

Esta teoria ganhou importância na área do marketing e das marcas, após empresas como Apple, Microsoft, Channel, entre outras, utilizarem esse conhecimento para agregar valor às suas marcas, seguindo os estudos de Jean-Marie Floch. Depois da aplicação destas teorias, as marcas nunca mais foram as mesmas, elas começaram a fazer parte da existência destas pessoas. Porque estas marcas possuem valores míticos.

Para Floch, as marcas possuem uma escala de valores; místicos, lúdicos, técnicos e práticos. O prático corresponde ao poder-fazer, o técnico, a um saber-fazer; e o lúdico, um querer-ser. E aos valores míticos, o “crer”. Porque o crer potencializa a alma dos sujeitos de forma concessiva. A força de atração de uma marca só é potente por causa desse valor mítico que é dado pelo sujeito consumidor.

Agora, pela primeira vez, conseguimos reunir um corpo teórico capaz de atender a necessidade da área das paixões dos personagens. Por isso que essa teoria tem o frescor das novidades.

Estrutura do curso
 
O curso é formado por basicamente “sete esquemas teóricos”; Programa Narrativo, Simulacro Existencial, Acontecimento extraordinário, Surpresa, Dano e Fratura, Cólera, e Vingança. Estes esquemas se cruzam formando a teoria narrativa baseada nas ações e nas emoções dos personagens.

O livro apresenta, em forma de curso, uma nova teoria da narrativa de ficção, através destes “esquemas”, que vão se interligando até formar uma grande teoria do ponto de vista do percurso gerativo do sentido, nos personagens e na estrutura do roteiro.

Dividimos a teoria em dois grupos de esquemas, que não se separam na prática: de um lado, os esquemas que nos ajudam a elaborar as camadas estruturais da narrativa, como o Programa Narrativo e o Simulacro Existencial; e, de outro, os esquemas estruturais dos personagens, como os acontecimentos extraordinários, o dano e a fratura, o ódio e a vingança.

Nos esquemas estruturais está o Programa Narrativo, um programa de execução de uma realização de um personagem em uma jornada em três atos, baseado em um contrato, no primeiro ato, uma manipulação no segundo ato e uma sanção no terceiro ato.

O programa tem um núcleo, que pode ser exposto em um gráfico, com funções que serão ocupadas por personagens. Esse programa em três atos é operado por, no mínimo, três funções, de um “sujeito” e um “objeto”, realizando um contrato para uma jornada, em que o “destinador”, tem a função de interferir nesta relação, puxando o sujeito ou o objeto para si, em troca de competências.

Assim como o esquema do Simulacro Existencial, onde podemos perceber a mesma jornada em uma camada mais profunda da narrativa, como sendo virtualizada a fase de contrato, em que um personagem só tem um “querer”; atualizada, a fase de manipulação, em que os personagens precisam adquirir “saber” e “poder”; e realizada, a fase de sanção, onde o personagem se potencializa na crença de suas competências.

Enquanto que, no Programa Narrativo, os personagens desenvolvem intrigas, especialmente entre um sujeito, um objeto e um destinador, no Simulacro Existencial, os personagens geram concessões, saltam etapas e criam mais uma fase chamada de potencialização.

O destaque entre os esquemas dos personagens é para o Acontecimento Extraordinário, a centralidade da ação, o ponto de tensividade, a transformação do personagem em seu sentir, de raiva a ódio, por exemplo, e da ação, promovendo um ponto de virada na história após a interrupção do acontecimento, obrigando a existência de uma passagem de um ato a outro.

Este esquema revela como um personagem leva o choque do inesperado, que irá causar um Dano, que também tem um esquema que relaciona o dano ao sofrimento e a jornada de busca de liquidação deste dano, que ocorre também na alma do personagem.

Outro esquema em destaque é o da Surpresa, que vem ser o que faz o acontecimento extraordinário ser tensivo e surpreendente. A supressa tem um esquema baseado na espera do inesperado, quando aquilo que estava previsto para acontecer não acontece. E acontece o inesperado.

Este esquema oferece ao roteirista uma noção de como tratar seus personagens para se tornarem surpreendentes, como em “Roma”, ou como surpreender o espectador, como em “Game of Thrones”.

E, por último, os esquemas dos efeitos das paixões nos personagens, como o esquema da vingança, e o esquema da cólera, duas grandes paixões que tem causas diferentes e surgem em razão de outras paixões, como a raiva, o ódio, o ressentimento, a apatia, entre outros.

A comprovação da eficiência desta teoria está em como ela pode ser aplicada em diferentes tipos de ficção, romances e séries, como “Game of Thrones”, da HBO, e “Roma”, de Alfonso Cuáron, produzido pela Netflix, um dos filmes mais aclamado e premiado dos últimos anos.