Um artigo na Folha de São Paulo de hoje (11 de agosto) é muito esclarecedor sobre o ponto de vista dos canais (TV Globo) e dos streamings (Netflix, HBO). Qual a diferença entre os dois segmentos aqui no Brasil, em que a Globo conhece seu público de novelas, mas tateia em busca do espectador do streaming, que, por sua vez, não alcança o público da TV aberta com suas séries? Ou seja, ambos desconhecem o público de seu segmento concorrente.
Esse artigo vem complementar a informação do que seriam os “vícios” da TV aberta, que nem sempre funcionam com o público de séries que estão no streaming. O artigo de Mauricio Stycer, “‘Rensga Hits’ seria melhor se a Globo tirasse os vícios da TV aberta do streaming”, esclarece esse desconhecimento de público, mas não diz que vícios são esses, porque descobri-los seria como achar “a galinha dos ovos de ouro”.
Tendo como subtítulo “Hesitando entre os dois universos, emissora segue como negócio peculiar e reduz impacto de boas séries”, o artigo de Stycer chama atenção para um fato relevante, sendo o principal vício da TV aberta a “negação do sofrimento”, que reflete muito o pensamento do brasileiro, de ontem e de hoje.
A negação do sofrimento
O principal vício da ficção na TV aberta é o tratamento que novelas e séries dão aos seus personagens, e não necessariamente às suas histórias, que é bem diferente do resto do mundo, tendo como principal exemplo a forma como os sentimentos e os sofrimentos dos personagens são negados. Existe uma nova ciência nas principais universidades do mundo, chamada Semiótica das Paixões, que demonstra os efeitos do sofrimento nos personagens.
As paixões mais conhecidas, como raiva, rancor, ressentimento, melancolia, culpa, ódio, medo, vingança, ambição, mais uma infinita lista, afetam diferentemente os personagens, mas, nas novelas da Globo, ao contrário do cinema e dos streamings, isso não é levado em conta.
Um exemplo bem claro está na novela atual das 18h, “Além da Ilusão”, de Alessandra Poggi, em que o personagem Matias (Antônio Calloni) mata a própria filha e sente uma “culpa” terrível pelo que fez. Só que, ao invés dele sofrer pela culpa, ele “enlouquece”. A culpa é a mesma paixão que afeta a personagem Dora, no filme “Central do Brasil”, em que ela se arrepende de ter vendido Josué para traficantes, e vai resgatá-lo. Assim como é a culpa que gera todo o sentido e profundidade do filme “Roma”, em que a personagem se arrepende e se sente culpada por ter desejado a morte da própria filha.
Em uma pesquisa no Google, encontramos muitas mídias com títulos remetendo à loucura dos personagens nas telenovelas, como em “Amor de Mãe”, onde “Thelma enlouquece e tenta virar Lurdes, enquanto a mantém refém”. Ou, no final de “Ti Ti Ti”: “Luísa enlouquece, atropela Marcela e foge”, e na novela “Fina Estampa”, o personagem “Pereirinha enlouquece e tem final trágico em alto mar”. Essa “loucura” vem ser uma paixão criada pelo brasileiro para negar a existência das paixões verdadeiras, que significam literalmente “sofrimento”.
A “verdade” do sofrimento nas séries e nos filmes
Em “Bacurau”, filme que agradou plateias no mundo inteiro, existe um caso raro do uso correto da aplicação das paixões nos personagens, em que Domingas (Sônia Braga) possui uma expressão “ressentida”, afetada pela paixão do ressentimento em razão de um drama no passado com outra mulher. Assim como temos a paixão da melancolia em Teresa (Bárbara Colen), que se sente “invisível”, e as expressões de “raiva” de Pacote (Thomas Aquino) e Lunga (Silvero Pereira).
Cada personagem tem seu tipo de sofrimento, e não uma loucura, que vem ser um “dano” endógeno, e do campo científico da psiquiatria. E foi esse uso correto do sentimento universal dos personagens, e não a temática bem brasileira, que levou o filme à mostra principal do Festival de Cannes, e possibilitou que a obra fosse entendida e reconhecida por outras plateias do mundo.
As paixões da raiva, melancolia e ressentimento afetam os personagens de maneiras diferentes. O melancólico tem um desejo de morte, se acha invisível, é um personagem “anestesiado”, como classificou Freud, enquanto que a raiva é uma paixão passageira, forte, rápida. Já a melancolia, ao contrário, não sai nunca do personagem, porque é uma paixão endógena, não adquirida como o desejo de vingança, e irá afetar o personagem até a sua morte. A paixão do ressentimento está ligada a um acontecimento passado, a uma forte mágoa que afeta de outra forma o personagem, e que é bem diferente dos efeitos da raiva ou da melancolia.
Essa falta de noção da verdade sobre as paixões resulta na “magia sentida” dos personagens das novelas e séries brasileiras que estão indo para o streaming, sendo que o cinema, as séries internacionais e a boa literatura rompem essa bolha.
Esses exemplos são para explicar “os aspectos novelesco e melodramático da trama” do texto de Stycer, que estão mais nos personagens do que na trama, e para mostrar quais são os vícios que a Globo e os streamings têm dificuldades de detectar.
“O que aproxima ‘Rensga Hits’ de ‘Filhas de Eva’ e ‘Sob Pressão’ são os aspectos novelescos, melodramáticos da trama, desnecessários numa produção destinada a um mercado baseado em assinaturas, mas essenciais, talvez, na TV aberta. Ao não saber exatamente para quem quer mostrar a série, a Globo acaba retirando parte de sua força”, explica o artigo, demonstrando o quanto a Globo não tem noção do que é “local” e do que é “universal” em suas novelas e séries.
A teoria da narrativa e da ficção, assim como as paixões, têm uma ciência hoje somente para si, considerada a nova ciência para o século 21. Escrevi um livro recentemente, “O Sentido das Paixões”, analisando, em ao menos cinco séries e cinco filmes, como as estruturas narrativas e os personagens são regidos por um “sentir” junto com o “agir”, a exemplo de filmes como “Roma”, “Parasita”, “Coringa”, “Bacurau” e “A Doce Vida”, e séries como “Game of Thrones”, “Big Little Lies”, “Round 6” e “Westworld”.