Por que existem os pontos de virada? É uma das técnicas aristotélicas mais conhecidas na teoria do roteiro, que vem a ser aquela cena forte, mais acentuada, que promove uma ruptura na história e na jornada do personagem. E existem centenas de teorias em volta do seus conceito, uso e função. Agora, com uma nova teoria da narrativa, uma ciência do próprio roteiro, uma semiótica do personagem, é possível termos um estudo próprio para este aspecto da narrativa, em que o ponto de virada é gerado e conduzido pelo personagem.
À nível da estrutura do roteiro, o ponto de virada são sequências, cenas, um pico na ação, que promove um intenso abalo nas paixões e crenças dos personagens, e serve para regular o tempo entre os três atos e para formar o arco da história e dos personagens. Do ponto de vista da narrativa, ocorre, do primeiro para o segundo ato, quando os contratos entre os personagens estão terminados. E, do segundo para o terceiro ato, quando a história e o personagem caminham para uma resolução final da intriga.
Todo roteirista estudou que o ponto de virada, o famoso plot point, são as cenas de grande acentuação dramática, usadas para promover uma reviravolta na história, um incidente, ou evento que interrompe a continuidade da história e não da narrativa. Syd Field estruturou bem a função do ponto de virada, no nível da ação. Mas, no nível do personagem, Field dizia que ainda não havia teoria para se chegar à alma dos personagens, sua estrutura interna, considerada “invisível”, e que descrever a alma dos personagens era como “descrever o sol em um dia nublado”.
Agora, podemos acrescentar aos seus estudos estruturais destas cenas fortes, o pico tensivo que abala a alma dos personagens. A narrativa contratual prevê uma teoria apenas para o ponto de virada, chamada, na semiótica tensiva, de “acontecimentos extraordinários”. Esses picos de tensão na narrativa, que mudam o rumo da história, são chamados de extraordinários se forem “concessivos”, não previstos, sob o impacto da surpresa que afeta o personagem. O ponto de virada só é importante se for elaborado tanto do ponto de vista da ação, como também das paixões dos personagens.
Esse ponto de virada não previsto, que abala a cognição do personagem, causando uma interrupção em sua jornada, modificará o personagem e a própria história narrada, tomando outra direção não prevista.
Os dois pontos de virada, no roteiro de “Coringa”, ocorrem de acordo com a norma aristotélica, também com acontecimentos tensivos, que fecham cada um dos episódios. O acontecimento extraordinário tensivo, para promover o ponto de virada de Arthur, ocorre na sequência do metrô, quando ele atira e mata os rapazes. É uma cena tensa, que abala profundamente Arthur. Depois deste acontecimento, ele sai modificado, dança sua vitória em seguida, ganha potência, acha que não precisa mais tomar remédios. Essa foi a sua transformação do primeiro para o segundo ato, em razão desta cena que acontece sem estar previsto, e que promoverá o ponto de virada na história e no personagem, encerrando o primeiro ato, quando todos os contratos entre os personagens já ocorreram.
O segundo ponto de virada de “Coringa”, que promoverá a mudança do segundo para o terceiro ato, ocorrerá quando, na cena, com dois terços ocorridos do tempo do filme, Arthur mata a própria mãe, de surpresa, numa ação inesperada. Esta cena é tensiva, extraordinária, o personagem age sem pensar, Arthur entrará em estado de choque e sairá modificado mais uma vez. Depois desta cena, Arthur não parece mais perder o controle do que “sente” ao se preparar para o seu show final, totalmente modificado, com poder para continuar matando sem sentir remorsos ou culpa.
O “ponto” como surpresa e sensação
A característica principal do ponto de virada, é que ele ocorre em forma de surpresa e em acontecimentos concessivos. O concessivo é o oposto do implicativo, aquilo que estava previsto para acontecer e acontece. O concessivo é o que muda o rumo da história em razão das mudanças que o personagem sofre, porque durante este acontecimento haverá um “dano” em sua alma, uma “fratura”, que irá pedir em seguida uma liquidação do sofrimento causado por este acontecimento.
O ponto de virada do roteiro de “Parasita”, do primeiro para o segundo ato, ocorre com a cena, que chega de imprevisto, da ex-governanta tocando a campainha da mansão, pegando a família de surpresa, que usufruía do luxo da casa. A cena do ponto de virada não é a que encerra o primeiro ato, como no roteiro de “Coringa”, mas a que inicia o segundo ato, a chegada da governanta. Até então, os eventos estavam correlacionados aos contratos.
A cena da chegada da governanta causa uma surpresa no espectador e nos personagens da história e, por isso, é tensa. Ela interrompe toda a jornada dos quatro personagens, com seus planos, até então, correndo perfeitamente. A surpresa é a quebra do esperado, que rompe com a implicação e abre uma concessão para que o inesperado aconteça. Ela muda o rumo da história. A partir desta cena, o que era uma comédia se transformará em drama e tragédia.
O segundo ponto de virada de “Parasita” ocorre em uma cena de um dia ensolarado na mansão, quando a família, no fundo do poço, após perder tudo que possuía, recebe um telefonema da família rica, como se nada houvesse ocorrido neste segundo ato, convidando-os para a festa do filho na mansão. Do nada, de surpresa, reabre uma nova chance para todos recuperarem os seus ritmos quebrados, e retomam aos contratos que existiam até o fim do primeiro ato.
As cenas dos pontos de virada em “Parasita” diferem das de “Coringa”, porque as cenas tensas de “Coringa” ocorrem no final do ato, no final do primeiro ato, quando ele mata os jovens no metrô, e, no final do segundo ato, quando mata a mãe. Enquanto que, em “Parasita”, as cenas que promovem os pontos de virada ocorrem no início dos atos, do segundo e do terceiro. A cena que abre o terceiro ato é tensa, os personagens agem sob surpresa ao serem tratados pelos patrões normalmente, e voltarão ao trabalho abalados e modificados após os eventos do segundo ato.
Do ponto de vista da paixão dos personagens, normalmente, o primeiro ponto de virada é o causador do dano e da fratura do personagem, e o segundo ponto de virada é uma cena que marca o início do fechamento destra fratura na alma do personagem. É o esquema básico de “Coringa”, que tem dois pontos de virada tensos, abrindo e liquidando fraturas.
Esse artigo é um resumo muito restrito sobre a teoria do ponto de virada, que em um estudo mais profundo irá mostrar como ele, de tão tenso, gera “fraturas” e “danos” na alma dos personagens. De forma que podemos perceber os pontos de virada “invisíveis” dos personagens, que são realizados apenas em forma de “sensação” sentida, e não uma ação realizada. Essa sensação paralisa o personagem, ou por uma tensão em forma de “admiração” com o objeto, ou de “percepção” do que escondia este objeto. Os pontos de virada dos personagens Cleo e Sofia, em “Roma”, de Alfonso Cuáron, ocorrem através de sensações dos personagens.
O ponto de virada aqui exposto como “acontecimento extraordinário” vem sendo aperfeiçoado desde os anos 1990. No livro “A Paixão nos Personagens” e nos vídeos do Screenwriter Online, eu desenvolvo uma longa teoria em torno desta lógica narrativa, considerada científica nas maiores universidades do mundo.