O que mais chama atenção nos filmes “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, e “A Filha Perdida”, de Maggie Gyllenhaal, dois filmes que estão na corrida do Oscar com destaque para o desempenho de seus atores, é a forma como os personagens principais são caracterizados. Especialmente como suas “imperfeições” são ocultas durante suas jornadas, em que carregam algum sofrimento e perturbações na alma que o espectador não reconhece.
Os filmes tratam de histórias de vida dos personagens, com enredos baseados em valores morais, e com os quais as obras são julgadas, ficando de fora o julgamento do mundo dos personagens, estes invisíveis, e que o espectador não vê. O escritor e o cineasta (os dois filmes são adaptados fielmente de obras literárias) também não percebem essas camadas invisíveis dos personagens quando os criam, mas as constroem usando suas intuições de artistas, de quem sabe entrar no mundo das pessoas em si.
Os autores destes filmes consideram esse mundo invisível dos personagens como um “pano de fundo” para suas ações. Mas, agora, com a chegada da Semiótica das Paixões, de A. J. Greimas, que anuncia um mundo novo, uma nova ciência do saber voltada para as paixões, podemos entender muitas obras que não foram compreendidas corretamente ao longo dos tempos. Essa ciência estuda os estados patêmicos de alma dos personagens, que vem formar as camadas internas e profundas onde se encontram as articulações das paixões e os danos que os tornam estranhos, através de um “simulacro existencial”, onde os personagens projetam sua potencialização.
Por milênios, as paixões vêm sendo observadas como “algo que afeta o corpo e a mente” dos indivíduos, e que estão ligadas à “potência” sentida. As paixões têm forças e são elas que sugam ou doam potência aos personagens. Esse reconhecimento das paixões, que significa o mesmo que “sofrimento”, nos tira do mundo do “achismo” sobre aquilo que não entendemos. E nos permite ver a camada invisível dos filmes e dos personagens como nunca vimos antes.
O que leva um escritor ou cineasta a ser verdadeiramente reconhecido é sua percepção das afecções das paixões nos personagens. Quando consegue penetrar nesse universo misterioso e invisível que o afetam (positivos ou negativos moralmente), que é gerado por suas “paixões”, como a raiva, o ódio, a vingança, o medo, a ambição, a culpa ou a melancolia. O que caracteriza as ações “perturbadas” das personagens Leda (Olivia Colman/Jessie Buckley – que concorrem ao Oscar por suas atuações) e Nina (Dakota Johnson), em “A Filha Perdida”, é o efeito que a paixão da “melancolia” provoca no personagem, e que foi usado corretamente por seus criadores.
O que preenche as camadas invisíveis dos filmes, que move e caracteriza os personagens de “Ataque dos Cães” e “A Filha Perdida”, algo que não vemos, mas sentimos o que o personagem sente, é a paixão da “melancolia”, a mais densa, mais tensa, e a que mais abala os personagens. E a principal característica desta paixão é que ela é inata e nunca sai do personagem, podendo se misturar a outras paixões, como o ódio, o medo, o desejo de vingança e a culpa, que são paixões adquiridas pelos personagens. A jornada de um personagem é motivada pela busca da liquidação do sentimento de sofrimento causado por essas paixões.
Em “Morangos Silvestres”, de Ingmar Bergman, há um personagem masculino se recusando a ser pai, porque não pretende perpetuar o “gene” do pai e da mãe, que sofrem como ele de “frieza”, um dos terríveis efeitos da melancolia. “Morangos Silvestres” tem o mesmo aspecto de “A Filha Perdida”, em que um homem se recusa a ser pai por saber que esse sofrimento que carrega (de um pai que nunca consegue tocar em seu filho) nunca o deixará, nunca será liquidado.
O que caracteriza as ações “perturbadas” das personagens Leda e Nina, em “A Filha Perdida”, é o efeito que a paixão da “melancolia” provoca no personagem.
Se formos observar novamente o personagem Meursault, de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, veremos que ele é julgado moralmente por não ter “sentido a morte da mãe”, nem se enlutado, e esse efeito irá se juntar às paixões da “culpa” por não sentir a perda da mãe. Esse efeito usado por Camus em seu personagem, que a crítica chama de “absurdo”, e que ele rejeita, é também usado por outros escritores existencialistas, como Jean-Paul Sartre, cuja obra “A Náusea” tinha o título original de “A Melancolia”. A melancolia vem ser a estrutura, corpo e alma da literatura existencialista. Sem perceber os seus efeitos, não se percebe a obra por completo, nem sua densidade, nem o mais importante que é a sua estrutura sensível.
Vem ser a melancolia a paixão que faz sentido em toda a obra de Marcel Proust, que compõe os sete livros de “Em Busca do Tempo Perdido”. A primeira revelação da verdade, no primeiro romance, “O Caminho de Swan”, que forma o primeiro livro e vem ser o primeiro capítulo, é a descoberta da melancolia pelo personagem, quando era criança. Vemos o “nascimento da melancolia”. O acontecimento ocorre quando o menino espera com grande expectativa um encontro sozinho com sua mãe, como sendo um acontecimento de grande tensividade, em que se sentiria muito feliz, mas não sente, quando isso ocorre. Sente-se frio e triste.
Se formos observar novamente o personagem Meursault, de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, veremos que ele é julgado moralmente por não ter “sentido a morte da mãe”, nem se enlutado, e esse efeito irá se juntar às paixões da “culpa” por não sentir a perda da mãe.
No cinema, podemos citar ao menos Frederico Fellini, François Truffaut e Ingmar Bergman como cineastas, entre muitos, que souberam usar corretamente a paixão da melancolia em seus personagens. A estética sensível dos dois filmes de Fellini, “A Doce Vida” e “Oito e ½”, que formam um só filme, é ancorada em um personagem melancólico e anestesiado (o mesmo personagem perpassa os dois filmes), que busca a morte como alívio final.
Os efeitos profundos da melancolia
O que vem ser a paixão da melancolia? A melancolia é uma paixão endógena, hereditária, considerada uma “doença”, cuja origem é difícil de classificar, mas que se manifesta nos afetos, nos sentimentos dos indivíduos. Aristóteles a chamava de “doença da alma”, um fardo que todos querem se livrar e não conseguem, mas ao mesmo tempo era também um sinal de inteligência excepcional, como a de Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) e Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), em “Ataque dos Cães”, um privilégio que os poetas e os heróis gregos possuíam. E seu efeito melancólico característico poderia ser comparado ao efeito alcoólico do vinho, em que os sujeitos ultrapassam suas medidas e mostram seu caráter verdadeiro.
Em minha pesquisa, que será utilizada na análise dos dois filmes, descobri que devemos levar em conta três das características mais fortes dos efeitos da melancolia, enquanto paixão, que agem no corpo e na alma de um personagem. A primeira é que o melancólico “não sente”, tem o coração anestesiado, a segunda é que possui, na maioria dos casos, um “desejo de morte” muito latente, e a terceira, que necessita da presença de um “destinador-morte” ou “destinador-vida” interferindo no seu destino.
Esses três fatores determinam muito a lista enorme que os melancólicos possuem como nominação, porque ainda consideramos a melancolia como uma “doença moral”. Os melancólicos são parasitas, se sentem tristes na alegria e na felicidade, são eternamente insensíveis, nunca estão satisfeitos consigo, com uma profissão ou uma parceria amorosa. Vivem numa bolha, perturbados, sem contato com o mundo dos objetos, o mundo natural. Talvez venha daí a razão da procura dos melancólicos por um destinador de potência, seja para viver ou para morrer, pois ele não tem forças muitas vezes para potencializar-se sozinho, se autodestinar.
A estética sensível dos dois filmes de Fellini, “A Doce Vida” e “Oito e ½”, que formam um só filme, é ancorada em um personagem melancólico e anestesiado.
O sentimento que perturba Leda e Nina, em “A Filha Perdida”, é o mesmo; não se sentem aptas a cuidar das filhas, “não se sentem mães”. Este tipo de efeito, presente em todos melancólicos, segundo Freud, em “Luto e Melancolia”, é de uma “anestesia” para o mundo sensível dos sujeitos. Há um congelamento de seus sentimentos. Assim, podemos entender que o melancólico não sente o sentir dos outros. É um ser quase-morto. E que isso lhe angustia, porque é eterno, nunca será liquidado, até o dia de sua morte.
As teorias do sentido oferecidas pela semiótica permitem ir na raiz desses acontecimentos que geram os apelidos nos melancólicos. Levam em conta a intensidade e a duração da paixão afetando o personagem, que tem um sentimento tão forte de falta de potência para agir e sentir, que se vê impedido de perceber muitas vezes a dor e o sofrimento do outro. Percebe-se os efeitos que o personagem sente, como se um “ralo” sugasse toda a sua energia e “potência”. E esses acontecimentos não se tratam de uma depressão no personagem, visto que Freud já frisou que todo depressivo é melancólico, mas nem todo melancólico é depressivo, e que a melancolia em si não é uma neurose. É uma herança genética antiga, que pode vir se reproduzindo nos filhos desde o começo da humanidade.
A melancolia é uma paixão endógena, hereditária, considerada uma “doença”, cuja origem é difícil de classificar, mas que se manifesta nos afetos, nos sentimentos dos indivíduos. Aristóteles a chamava de “doença da alma”, um fardo que todos querem se livrar e não conseguem.
O filme norueguês “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier, tem duas menções ao Oscar deste ano, de melhor Argumento Original e melhor Filme Internacional, exatamente porque soube explorar corretamente os efeitos da melancolia na personagem Julie (Renate Reinsve), para construir a narrativa, as camadas profundas da personagem, que vem formar a estética sensível da obra cinematográfica. O próprio título do filme, de Julie ser a pior pessoa do mundo, já é considerado uma das alcunhas morais negativas que o melancólico recebe.
O filme narra a jornada de Julie, chegando aos 30 anos, mas que, em razão do efeito da melancolia, troca de faculdade a todo tempo, como também troca de namorado, e se recusa a ser mãe. E se conforma como vendedora em uma livraria. Mas o seu grande incômodo é não sentir desejo de ser mãe, não sentir que seria uma boa mãe, e, por isso, sofre pressão para ter filhos sem ela querer. Tem o mesmo dano passional existente em Leda e Nina.
O filme é repleto de frases sobre a personagem Julie, que refletem essa afecção melancólica para além do anestesiado e sem potência, como “sempre exagera”, “nunca vê nada adiante, vai de um lado para o outro”, é uma pessoa “inconstante” e não se apega a nada por muito tempo; até os acontecimentos que seriam tensivos para a maioria das pessoas, não surtem efeito imediato para os melancólicos.
O melancólico “não sente”, tem o coração anestesiado, e possui, na maioria dos casos, um “desejo de morte” muito latente.
Em “A Filha Perdida”, a frase de maior efeito tensivo no filme é dita, quando, no final da trama que oculta uma verdade a ser revelada, no impacto da descoberta da verdade, a jovem mãe Nina, com seu sofrimento presente, mesmo estando na praia com a família, com uma criança nos braços, pergunta a Leda, a velha mãe, se “isso passa”. Isso o quê? O que Nina pergunta para Leda não se refere a uma depressão pós-parto, um efeito “ruim” e passageiro em razão do nascimento da filha. Leda diz que “não”, que não passa, que não se trata de uma angústia qualquer, é uma dor que vem de um lugar muito mais profundo, e que sempre estará lá. Essa é a verdade que torna o filme rico e sensível para o público, mas que se encontra oculto no mundo do seu simulacro existencial, onde o espectador não tem acesso.
Leda, no plano narrativo, é tomada pela paixão da “culpa”, como um julgamento moral, que perturba suas férias em uma praia, numa jornada no filme de se livrar de uma “culpa”, uma paixão que abala seu sossego (mas que pode ser liquidada), por ter se descuidado das filhas quando eram pequenas. Já tratamos, em outros artigos, dos efeitos de outras paixões, como o “ressentimento” e a “culpa”, paixão que estrutura personagens de Alfonso Cuarón, em “Roma” e “Gravidade”, em que mães sentem a perda das filhas como culpa, tal como sente a personagem Leda, quando mais velha, em “A Filha Perdida”.
Os melancólicos são parasitas, se sentem tristes na alegria e na felicidade, são eternamente insensíveis, nunca estão satisfeitos consigo, com uma profissão ou uma parceria amorosa.
A estrutura sensível que transformou o roteiro do filme de terror “Corra”, de Jordan Peele, eleito o melhor roteiro do século, não está no absurdo e no aterrorizante de sua história, mas nos efeitos causados pela paixão da “culpa” que o personagem Chris (Daniel Kaluuya) sente por não ter salvo a mãe da morte. Em razão dessa culpa se tornou frágil e, portanto, mais fácil de ser manipulado pelos outros por causa dos efeitos sentidos por esta paixão.
A estratégia do destinador-vida ou destinador-morte
Na falta de energia, muitas vezes o melancólico, intuitivamente, é atraído por um “destinador de potência”, sempre para se livrar do sofrimento, ou pela morte ou pela troca de destinadores que lhe deem potência para não morrer. Na gênese da semiótica narrativa, um personagem deve fazer sua jornada (de sentir e de agir) para liquidar seu sofrimento. Busca uma potencialização quando realiza contratos com objetos que lhe deem o valor ou poder que precisam para cumprirem suas jornadas, sendo o contrato entre um “sujeito e um objeto” ou entre um “sujeito e um destinador” o jogo estético que formará o discurso fílmico.
Em “Jules e Jim”, de Truffaut, a personagem Catherine (Jeanne Moreau), sob efeito do desejo de morte gerado pela melancolia, morre se jogando de carro em um rio, levando consigo Jim (Henri Serre), o personagem que lhe dá potência para morrer, enquanto Jules (Oskar Werner), seu divertido marido, lhe doava potência para viver.
Diferente de Catherine, a personagem Celeste (Nicole Kidman), de “Big Little Lies”, é um exemplo de como um personagem anestesiado age com ajuda de um destinador. Celeste “não sente ser mãe” (como Leda e Nina) de seus dois filhos pequenos, e tem no marido, mesmo violento, um destinador que a coloca em linha direta com os filhos. Há cenas com ações mostrando esse vínculo. A personagem Celeste é impotente para reagir, praticamente “não sente” a dor das pancadas que sofre do marido, porque a dor de sua angústia é mais forte e tensa. E ser anestesiada a fragiliza, porque precisa fazer o que destinador quer que ela faça em troca da potência doada. Celeste só troca de destinador à força de outro destinador. Ela recusa deixar o marido, fonte de sua potência, precisando da ajuda de outro destinador, sua analista, que precisará de muita persuasão para desfazer esta atração quase transcendente.
O filme norueguês “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier, tem duas menções ao Oscar deste ano, de melhor Argumento Original e melhor Filme Internacional, exatamente porque soube explorar corretamente os efeitos da melancolia na personagem Julie.
Na narrativa, existe um “contrato” em que o melancólico sempre está preso na figura de um destinador, de preferência um “destinador transcendente”, como é um pai ou uma mãe, e Deus para os crentes. Um vínculo de potência inquebrável, que tem como característica o destinador “ser terrivelmente atraente” para o sujeito melancólico. O objeto precisa ocasionar um acontecimento para que o destinador seja percebido, porque o melancólico tem dificuldade de perceber acontecimentos que não sejam transcendentes. E não se importam em ser manipulados por eles, já que a manipulação e a persuasão são características marcantes dos destinadores, que estão sempre “puxando” os sujeitos manipulados para si.
É o caso do personagem Marcello (Marcello Mastroianni), em “A Doce Vida”, de Fellini, que tem um desejo de morte oculto em sua alma que irá se revelar somente quando encontra um destinador-morte, que lhe traz a verdade ao se matar de surpresa no final do filme. Marcello é um repórter de futilidade que nunca consegue terminar de escrever seu primeiro livro, não se liga a ninguém, até que encontra Steiner (Alain Cuny), um colecionador de arte, sensível, que beija os filhos antes de dormir, mas que, inesperadamente, se suicida.
De todos os personagens que Marcello encontra durante sua jornada, apenas Steiner gera um “acontecimento extraordinário” em sua vida. É através de Steiner que Marcello quebra a bolha de seu simulacro, quando descobre a “morte” também no seu sentir, e que se ocultava na alma do seu amigo melancólico. E este mesmo personagem de Mastroianni, com o nome de Guido, está no filme seguinte de Fellini, “Oito e ½”, onde também se suicidará no final, como fez seu destinador no primeiro filme.
Em “Ataque dos Cães”, existe um encontro explosivo entre dois personagens melancólicos, o demoníaco e aterrorizante Phil Burbank e o frágil e pálido garoto Peter Gordon, porque ainda está oculto que Phil está preso a um “dano” terrível, ao seu amigo e amante Bronco, que lhe destinou toda a potência e ainda destina mesmo depois de ter morrido há muitos anos. O acontecimento extraordinário entre os dois ocorre quando Peter faz uma longa caminhada de cabeça erguida entre os peões para observar um ninho de pássaros. Ele, então, é humilhado por eles, mas se mantém tão “frio”, que Phil imediatamente é tomado pela potência oculta de Peter. Phil surpreende o espectador e a mãe de Peter, Rose, com uma mudança radical com relação ao garoto, passando de imediato do desprezo para admiração.
A estrutura sensível que transformou o roteiro do filme de terror “Corra”, de Jordan Peele, eleito o melhor roteiro do século, não está no absurdo e no aterrorizante de sua história, mas na “culpa” que o personagem Chris sente por não ter salvo a mãe da morte.
Em “A Filha Perdida”, a personagem Leda, que tem uma potência de morte muito forte, chama atenção de Nina na praia de forma intensa, como se a jovem mãe estivesse diante de uma descoberta sobre o que ela sente, mas não sabe de onde vem esses sentimentos confusos e dolorosos. Por ser jovem, ainda desconhece os efeitos repetitivos da melancolia. Aos trinta minutos de filme, existe esse acontecimento, em que Nina observa, encantada, por um longo tempo, a intensidade da “potência de morte” em Leda, como Phil viu em Peter, e Marcello, em Steiner. Eles geram “contratos afetivos” apenas atraídos pela paixão da “admiração” que sentem pela força tensiva de um destinador.
O acontecimento extraordinário que mudou o sentir de Phil, de pior pessoa do mundo para melhor pessoa do mundo, foi curto, e Phil, em poucos segundos, se torna, de um ser duro e cruel, um ser gentil, que conquista Peter sem resistência. O que ocasiona essa mudança é a forma como Peter “atraiu” Phil, não como um objeto resplandecente qualquer, pelo qual um sujeito se apaixona, mas por um destinador transcendente, como foi Bronco, sua fonte de potência perdida (classificamos este tipo de perda como sendo um esquema formado por “danos e fraturas”).
Há duas consequências dessa relação afetiva entre o sujeito e o destinador. A primeira é de natureza narrativa, e que formará o sentido no final do filme. Uma trata-se da frase que Peter fala antes do filme começar, de que “precisa proteger a mãe”. A outra é que Peter se torna um “destinador-morte” para Phil, sem que ele saiba, porque seu novo destinador tinha uma potência oculta que Phil desconhecia.
No livro que gerou o filme, cuja adaptação é muito fiel, apesar de o filme não explicar o passado de Peter, existe uma longa explicação das características de sua passionalidade, como sendo uma pessoa não menos estranha e “fria” que Phil e seu irmão George (Jesse Plemons). Peter sempre foi chamado de maricas na escola e nunca se importou, só se irritava quando chamavam seu pai, um médico medíocre, de bêbado. E teve sangue frio para tirar a corda do pescoço do pai quando se suicidou, assim como tem para matar galinhas e coelhos com grande frieza e tranquilidade. Esse ser intocável pelos efeitos da melancolia, tão inteligente quanto Phil, foi o brilho que atraiu Phil sem ele perceber. O destinador precisou ter uma “potência de morte” para poder chamar atenção do sujeito melancólico.
Na narrativa, existe um “contrato” em que o melancólico sempre está preso na figura de um destinador, de preferência um “destinador transcendente”, como é um pai ou uma mãe, e Deus para os crentes.
A relação que está no plano da narrativa, que esconde uma intenção oculta, é a de que Peter está manipulando Phil para executar um plano de vingança, para livrar ele e a mãe do “Poder do Cão” ao matá-lo. Phil, além de os aterrorizar psicologicamente, foi o responsável pela morte de seu pai. No livro (não está no filme), há uma grande explicação para o suicídio do pai de Peter, ocasionado por um acontecimento provocado por Phil, que o humilha quando o encontra bêbado diante dos amigos, e o agride fisicamente, fazendo com que pare de beber pela primeira vez em anos. Mas entra em grande depressão após esse incidente e se mata, porém o texto sempre deixa a dúvida se Peter e a mãe sabiam desses fatos.
Quando Peter mata Phil friamente, como se fosse uma vingança, é resultado também de um jogo de forças entre destinadores, porque Peter tem um destinador-transcendente “mãe”, que lhe dá toda potência que precisa, e por isso decide ficar do lado da mãe e eliminar o outro destinador, menos potente. É o mesmo que acontece a John Snow, o mais melancólico dos personagens da série “Game of Thrones”, nas cenas finais, em que se encontra diante de dois destinadores, Daenerys Targaryen, sua amada, e a sociedade que o elegeu como “destinador social” que lhe dá o valor que precisa para não ser mais um bastardo. Na escolha, mata sua amada, um destinador com menos potência.
A intensidade do “dano” em razão da melancolia
Em “Ataque dos Cães”, o que torna Phil um sujeito misterioso, frio, agressivo, infeliz, sem usufruir de sua sabedoria e inteligência, será revelado no final como sendo um grave “dano” em sua alma; a perda de Bronco Henry, um amigo e amante, o melhor dos cavaleiros, que ensinou Phil a trançar couro cru, e que se tornara seu “destinador transcendente”. Este tipo de destinador tem uma força de atração muito forte sobre os sujeitos, como pai e mãe para os filhos, ou Deus para os crentes. Sua perda ocasiona uma perda de potência, potência de existir.
O dano de Phil foi adquirido, resultado de uma perda, e a melancolia não tem referência com perdas e danos, ela é inata, mas o dano de seu irmão George trata-se de um dano endógeno, genético, e seu jeito calado, sem ter “sentimentos”, sem percepção do mundo como os outros, é resultado evidente de um grande “déficit de atenção”, e que a ciência hoje chama de TEA (transtorno do espectro do autismo), uma ocorrência em adultos só analisada recentemente. As ações de George, como pedir Rose em casamento às escondidas, sem levar em conta as consequências, decorre desse dano no corpo, que não “sente consequências” nem de seus atos nem de outros.
O acontecimento extraordinário que mudou o sentir de Phil, de pior pessoa do mundo para melhor pessoa do mundo, foi curto, e Phil, em poucos segundos, se torna, de um ser duro e cruel, um ser gentil, que conquista Peter sem resistência.
Phil tem uma inteligência incomum, aprendeu a tocar banjo e a jogar xadrez sozinho, é um carpinteiro de primeira, e um filólogo clássico, especializado em grego e latim, mas vive preso ao seu sofrimento. A função narrativa de Phil é cuidar do irmão, que não sabe cuidar de si, é como se fosse um menino de 10 anos. O pai e a mãe de George aparecem no filme como uma fonte de seu dano, são personagens que têm os mesmos sintomas que os filhos, são desatenciosos, e vivem sem a necessidade da potência que filhos destinam aos pais.
Para a estética fílmica e da ficção, o que importa é dotar os personagens com os efeitos de suas paixões e danos. O efeito do dano de Phil, a perda do amigo que lhe gerou uma fratura na alma, é tão potente ao ponto de mantê-lo preso àquela vida de castigo, como se sofresse propositadamente por ter perdido Bronco Henry. O dano de Phil é mostrado através de um “santuário” que fez para Bronco e quando se masturba com o lenço do amigo morto, e que por isso se mantém preso àquela casa e àquela montanha. Os irmãos vivem numa casa abandonada, ricos, mas sem confortos, presos ao lugar por um dano na alma de Phil.
Segundo o sentido da teoria da narrativa, esse dano que se tornou algo sinistro em Phil, duro como uma rocha em sua alma, ao ponto de se manter preso àquela casa sinistra, só será liquidado, quando sua admiração por Bronco for dissipada. O que ocorre com a presença de Peter. O escritor e a cineasta mantêm esse “segredo” da vida dos personagens como uma revelação da verdade oculta, que precisa ser revelada na sanção, no julgamento final dos personagens, quando a revelação do dano vem ser o evento da narrativa que mais impactará o espectador.
Essa mesma estratégia narrativa do dano e da melancolia foi utilizada por Chloé Zhao, no filme “Nomadland”, vencedor do Oscar de melhor filme em 2021, em que todo o sofrimento da personagem Fern (Frances McDormand), uma mulher de 60 anos que perambula sem rumo vivendo em uma van, sem conforto, sem banheiro, está relacionado a um dano como o de Phil. Somente no final do filme, quando Fern volta ao lugar de partida pelo interior dos EUA, revela-se que ela estava presa ao marido que já morreu, e que viviam praticamente isolados do mundo. Os dois deviam sofrer os efeitos nefastos da melancolia e sua perda ocasionou uma fratura tão difícil de liquidar como a de Phil.
A verdade sobre o sofrimento da personagem é revelada através da “aliança” que Fern usa como se ainda fosse casada, da mesma forma que Phil faz um memorial em homenagem à perda de seu amante Bronco Henry, como se o contrato entre eles nunca tivesse terminado. O que motiva Fern a vagar sem rumo não é a recessão americana, mas os efeitos nefastos de um dano terrível em sua alma, que ganhou potência em razão dos efeitos anestesiantes para sentir, oriundos da melancolia. E o que tem levado muitos filmes a ganhar fama e prêmios mundo afora vem do uso correto destas paixões, como elas deixam o ser humano “imperfeito” como ele é, e que, por isso, tanto negamos e fugimos delas.